Entrei nos porões da alma e revisitei espaços que, pelos tempos idos, já se tornavam estranhos e distantes.
Entre umas e outras frestas, fui percorrendo lugares e acendendo luzes sobre os mesmos.
Percebi que rememorar é acender luz sobre esquecimentos. É também uma forma agradável de trazer pra perto, aquilo que se fez distante por causa das concretudes da vida.
Querendo recuperar o tempo, ou pelo menos revisitá-lo sem saudades ou amarguras, focalizei meus rastros, sinalizando-me uma infância cheia de significados novos.
Novos por causa da consciência que se acendeu no momento em que adentrei os porões e me permiti ser feliz com a realidade que neles se encontrava.
Ficam nos porões da alma aquelas histórias que não tiveram fins brilhantes e que traçaram nela, marcas rotas e cinzentas.
Histórias felizes saem para a luz e tomam posse das saletas mais dignas da casa que habitamos.
Então nos porões encontrei as minhas frustrações e as limitações que não soube administrar. Encarcerei-as lá e passei a tramela para que não me perturbassem.
Interessante essa capacidade humana de vislumbrar apenas aquilo que se quer e de colocar pedras sobre situações que perturbam nosso coração. É jeito que se acha de salvaguardar a nossa integridade mental e sobreviver.
Hoje eu disse para mim pela primeira vez: a minha neta vai chegar em breve.
Essa frase abriu a tramela do porão e de lá soou uma sentença inteiramente real: “você também é neta...
Então passeei pelo tempo em que ser neta tinha conotações muito interessantes pra mim.
Percebi que ser neta, em determinado tempo de minha vida, foi mais forte em emoções do que ser filha.
Revisitando os porões da alma desejei entender-me como neta e perdoar minhas imperfeições como tal.
Na minha casa de infância, num primeiro momento, conheci uma família que se constituía assim: meu avô, meu pai, minha mãe e eu.
Minha mãe fazia comida e lavava roupas no rio.
Meu pai arava a terra, cuidava dos animais e supria de mantimentos a nossa casa.
Meu avô cuidava de mim.
Ele, o meu avô, tinha os cabelos alvos como algodão, as mãos firmes que conduziam o cavalo nos nossos passeios, os joelhos fortes que me apoiavam enquanto contava histórias para mim. Ele era um personagem que me fascinava e me possibilitava crescer com segurança. Conversava comigo. Contava-me histórias ricas de detalhes e imaginação. Ensinava-me cantar modinhas e dizer versos. Incentivava-me a me apresentar para as visitas, cantando ou declamando cantigas e prosas.
Meu avô era manso e forte.
Com ele aprendi cavalgar e, ao tomar as rédeas do cavalo, exercitei-me a tomar as rédeas da minha vida e a conduzi-la com dignidade e firmeza.
E eu sei que aprendi ter segurança e acreditar que nunca estaria só, quando meu avô me ensinou a rezar.
Antes de adormecer, muitas vezes em seu colo, eu pedia a proteção do Anjo da Guarda e o cuidado de Deus.
Foi assim que eu me identifiquei como neta.
Mas por que então, guardei nos porões essa minha história?
Ao mesmo tempo em que tive o meu avô perto de mim, fui neta da minha avó materna que aparecia lá em casa sempre que minha mãe ia ganhar mais um bebê. Sempre acreditei que minha avó não gostava de mim. (Seria porque ela chegava e logo eu perdia um pouco mais a minha mãe para meus irmãos?)
Minha avó era uma pequenina senhora, muito inteligente e muito cheia de regras.
- Não suba nas árvores; seja comportada; não coma os biscoitos que fiz pra sua mãe; não ande a cavalo pelos campos como se fosse menino; cuide dos seus irmãos menores (e eu não era menor que ninguém); ajude nas tarefas de casa; vá buscar água no poço; você é grande, então se comporte como tal; ajude mais sua mãe; dê bons exemplos pros teus irmãos; (eram muitas solicitações para um curto espaço de tempo em que ela ficava perto de mim).
Eu tinha seis anos quando meu avô faleceu. Essa realidade foi muito chocante para mim. Eu perdi aí uma referencia mais do que especial para minha vida. Quando eu tinha treze anos perdi a minha avó.
A partir daí fechei no porão da alma a minha condição de neta.
Hoje eu disse pra mim: a minha neta vai chegar em breve.
Então tomei coragem e visitei-me como neta.
Sei que só poderei ser uma avó que valha a pena se eu clarear minha pequena história de infância e compreender-me como pessoa na relação que tive com meu avô e minha avó. E assim também, compreende-los nas suas diferenças radicas que se fizeram ao se apresentarem para mim.
Hoje os porões da minha alma estão tomando um banho de claridade e me fazendo mais segura ao adentrá-los e passear por eles como avó que serei daqui a pouco.
Quero acolher a minha neta e escrever com ela, um novo recomeço, porque a vida nos chama sempre para fora dos nossos porões e para um espaço privilegiado da nossa alma: a sala de estar. É ai que a completude da vida se faz maior que os medos das tramelas que nos limitam.
Soni de Mello Santos – Escritora e Pedagoga (e agora avó)
publicado naFolha das Máquinas de 28.01.11
ResponderExcluir